Quem escreveu "Jaz morto e arrefece" era muito maior do que nós, é figura de culto, de conferências, de palestras, de teses de mestrado e de doutoramento e outras 'academices'. Que me perdoe o atrevimento quem quiser reclamar, mas vou surripiar-lhe a expressão e a inspiração para referir-me ao meu amigo Pakey, ontem falecido, antes que ele arrefeça e eu perca o fio à meada compridíssima das boas recordações que alistarei enquanto a memória me permitir.
De uma maneira geral todos temos dificuldade em falar da morte, quer porque se trata de uma situação na maior parte dos casos dolorosa, quer porque há milénios coloca-nos uma série de interrogações. Quando a morte ocorre nas nossas famílias ou no nosso círculo de amigos, e temos de frequentá-la contra todas as resistências, vivemo-la com a maior das frugalidades e tratamos de despachá-la rapidamente. Mas, por enquanto, ainda me lembro de como o Pakey ficou desfigurado pelo cancro e sugeria, nos seus últimos dias de vida, a imagem que temos dos judeus encanzelados dos campos de concentração ou, numa versão mais ternurenta, os simpáticos extra-terrestres de olhos esbugalhados dos "Encontros Imediatos do Terceiro Grau", de Steven Spielberg. Apesar de fisicamente depauperado, sulcou até ao fim a sua finíssima onda de humor, que se erguia quando menos se esperava. Teve sempre na ponta da língua a palavra adequada a cada situação, como se costuma dizer, e por isso as suas tiradas de humor eram disparadas com a velocidade de uma bala, quase sempre inofensivas porque não se lhe conheciam más intenções. Poucos minutos antes de nos deixar e na presença de um relativamente numeroso grupo de amigos, quando a filha, sentada num banquinho ao lado da cama onde jazia, virou-lhe as costas para sussurrar a uma amiga que fosse à cozinha preparar um café para o médico que denodada e amavelmente acompanhou-nos noite e madrugada dentro, disparou o seguinte e muito irónico chiste: "Eh lá, meninas, o que vem a ser isto?! Não se dizem segredos diante dos doentes!" Teria decerto pensado no facto de, contra todas as evidências, ter-lhe sido sempre omitido o nome da doença e a gravidade do que padecia e de, nas últimas horas, as pessoas em seu redor, uma vez ou outra, após observarem se ele estava ou não atento ao que se passava, dado ao seu estado de prostração e de aparente semi-vigilância, fazerem sinais e murmurarem coisas em direcção à porta do quarto do qual, pé-ante-pé, se aproximavam os amigos que montaram guarda na última noite e se queriam inteirar de como evoluíam as coisas. Porque naquele momento estivesse muita gente no quarto, foi um instante de hilaridade geral e o ambiente ficou aliviado.
Não conheci ninguém que zombasse tanto da morte como o Pakey. Numa ilha em que quase todos se conhecem, os enterros são muito concorridos e inúmeras vezes encontrei-o nas marchas vagarosas a caminho do cemitério, sendo ele a minha companhia predilecta, pois esconjurava melhor do que ninguém os fantasmas que povoam aqueles ambientes e cumpria com maestria uma curiosa tradição dos ilhéus: "Trá terra de môrte", uma expressão crioula que, traduzida à letra, quer dizer "tirar a terra da morte"... é que depois das pazadas com que se entopem as sepulturas, o pessoal iniciado dirige-se aos botequins de sua afeição para beber uns cálices de grogue - aguardente de cana de açúcar -, a fim de lavar as goelas ressequidas pela terra dos covados. Há cerca de um ano, combinámos que eu passaria pelo seu escritório para juntos acompanharmos, no meu carro, o funeral do dr. Adriano, uma pessoa ilustre cá da ilha. Como estava cheio de trabalho nesse dia, pediu-me que fosse buscá-lo depois da missa de corpo presente, mas advertiu-me que não chegasse atrasado. Não era que o finado desmerecesse, mas o padre levou mais de hora e meia a pôr sobrescritos nas cartas de recomendação, de maneira que quando , finalmente, passei à porta do Pakey, estava ele farto de esperar e disse-me afogueado: " Caramba! Pensei que o dr. Adriano tivesse ressuscitado e já não houvesse funeral!"
De modo que já se previa que o velório do Pakey, além de muito participado, desse lugar a episódios lúdicos. E foi tanto assim que alguém contou que o Pomba, músico e rapaz muito rodado nessas andanças, fora chamado para tocar na banda que ia acompanhar o enterro do pai de um grande amigo. Conhecedor das ruas por onde seguiria o cortejo, o Pomba, que intercala grandes estiagens com períodos de rega incontinente, esgueirou-se para o bar de Nha Dadó, na Rua do Côco, onde aguardaria que o féretro passasse, enquanto beberia dois ou três cálices, após o que voltaria a juntar-se à banda. A Rua do Côco é contígua ao largo da Igreja Matriz, onde se rezam quase todas as missas do género, e é por ela que passa a maioria dos funerais. O que o Pomba não podia adivinhar é que a família do extinto decidisse à ultima hora que, em vez de seguir pela Rua do Côco, o séquito percorresse a Rua da Luz, uma via paralela, onde se situava o escritório do falecido, para mais um gesto de homenagem. Entretido e embalado à mesa do botequim, entre uns tragos de grogue e o dedilhar do violão, deixou-se estar até ver, subitamente, entrar bar adentro os companheiros da banda, que traziam os sapatos cheios de terra. Eis, então, que o Pomba despertou e perguntou: "J'ás rancá?", que em português significa "Já largaram, já partiram? - para o cemitério, deve presumir-se -, ao que os outros responderam: "Já nô vrá! Nô bem trá terra! (Estamos de volta, vimos 'tirar a terra'!)".
JL
Caro John,
ResponderEliminarLi com gosto e reconheci-te na qualidade da prosa. Comoveu-me a homenagem ao Pakey, de quem sei eras muito e fiel amigo, até ao último suspiro.
Um grande abraço,
Jorge
Sinto-me privilegiado por ter tido a oportunidade de conviver com o Sr. Pakey. Já muito velho e sem forças, mas sempre com uma tirada espirituosa na ponta da língua. Que bonita amizade a vossa, John.
ResponderEliminarAbraço,
Tiago